Caso dos 500 milhões visto pela justiça como apropriação “sem escrúpulos” de dinheiros públicos

Caso dos 500 milhões visto pela justiça como apropriação “sem escrúpulos” de dinheiros públicos

O Tribunal Supremo considerou hoje o caso da transferência de 500 milhões de dólares do Banco Nacional de Angola (BNA) para o exterior como um exemplo do aproveitamento de cargos para a apropriação “sem escrúpulos” de dinheiros públicos.

A posição consta do acórdão que condenou os arguidos envolvidos no caso dos “500 milhões” pelos crimes de peculato, burla por defraudação e tráfico de influência.
“Este processo é um exemplo de que, governando ou administrando, as pessoas aproveitam-se dessa condição, com vista a apropriarem-se sem escrúpulos e plenamente conhecedores da ilicitude dos seus atos, de dinheiros públicos, para lograrem benefícios económicos e financeiros pessoais, querendo esvaziar os cofres do Estado, o que só não ocorreu dada a rápida intervenção do banco inglês que bloqueou a transferência dos 500 milhões de dólares”, leu o juiz que presidiu ao julgamento, João Pitra.
O tribunal condenou Valter Filipe, ex-governador do BNA, a oito anos de prisão maior, António Samalia, ex-gestor do BNA, a cinco anos de prisão maior, José Filomeno dos Santos, antigo presidente do Fundo Soberano de Angola, a cinco anos de prisão maior, e Jorge Gaudens Sebastião, empresário, a seis anos de prisão maior.
O acórdão notou ainda que neste tipo de criminalidade financeira a reparação não tem um peso tão expressivo como noutros, porquanto não se reduzem à proteção de valores de natureza patrimonial, mas há outros como a probidade e fidelidade dos funcionários, como o crime de peculato e credibilidade das instituições públicas.
A sentença realçou que a conduta do BNA denegriu a imagem do país no exterior.
Sobre a carta enviada ao tribunal pelo ex-Presidente da República José Eduardo dos Santos, pai de José Filomeno dos Santos, o tribunal deu como não provado que a mesma fosse de sua autoria, “não porque não obedece aos requisitos exigidos pelo tribunal, nomeadamente a assinatura reconhecida, mas pelo seu conteúdo”.
“Com efeito, não nos parece verosímil, que o então Presidente da República, enquanto mais alto magistrado da nação pudesse autorizar uma operação de montante tão elevado pelo governador do BNA por si nomeado, que sabia não ter competência para a mesma”, referiu a sentença.
Por outro lado, o tribunal considerou também “que as respostas acabam por ser quase uma reprodução da contestação apresentada pela defesa de Valter [Filipe] e as declarações do próprio em sede de audiência de julgamento”.
“O que não deixa de causar estranheza, porque todos nós somos diferentes e naturalmente a forma de escrita, por muito que seja a proximidade, difere de pessoa para pessoa, e no caso, a redação, como dissemos e sublinhamos, parece escrita por uma única pessoa e vai ao encontro da defesa deste arguido”, frisou.
Para o tribunal, ainda que a carta fosse valorada, “não excluiria a ilicitude do comportamento do arguido, porque se trataria de uma ordem ilegal ao qual não deve obediência”.
O ex-chefe de Estado confirmou em carta que deu orientações a Valter Filipe para conduzir o processo, que captaria para o país 35 mil milhões de dólares, através de um Fundo de Investimento Estratégico, bem como para transferir os 500 milhões de dólares, tudo dentro do “interesse público”.
A carta de José Eduardo dos Santos foi enviada ao Tribunal Supremo, onde decorreu o julgamento, desde 9 de dezembro de 2019. A defesa de Valter Filipe solicitou que o ex-Presidente fosse ouvido sobre a tese de que teria orientado a referida operação.
Os arguidos foram condenados pelos crimes de peculato e burla por defraudação na forma continuada (Valter Filipe e António Samalia), tráfico de influência e burla por defraudação na forma continuada (Filomeno dos Santos e Gaudens Sebastião), tendo todos sido absolvidos do crime de branqueamento de capitais de que estavam acusados e pronunciados.
O caso remonta a 2017, altura em que Jorge Gaudens Sebastião apresentou ao amigo de longa data, José Filomeno dos Santos, uma proposta para o financiamento de projetos estratégicos para o país, que encaminhou ao executivo angolano, por não fazer parte do pelouro do Fundo Soberano de Angola.
A proposta previa a constituição de um Fundo de Investimento Estratégico, a ser sustentada por um consórcio de bancos, que captaria para o país 35 mil milhões de dólares (28.500 milhões de euros).
O negócio envolvia como “condição precedente”, de acordo com um comunicado do Governo, de abril de 2018, que anunciava a recuperação dos 500 milhões de dólares, a capitalização de 1.500 milhões de dólares (1.218 milhões de euros) por Angola, acrescido do pagamento de 33 milhões de euros para montagem das estruturas de financiamento.
Os arguidos foram ainda condenados solidariamente a pagar uma indemnização ao Estado de cinco milhões de kwanzas por danos morais, 8,512 milhões de dólares pelos prejuízos resultantes das suas ações, despesas com o processo judicial que correu trâmites em Londres num valor de dois milhões de libras, relativos a honorários com advogados na recuperação dos valores, em Londres, nove mil dólares relativos a bilhetes de avião e mais cinco milhões de kwanzas de ajudas de custo da viagem a Londres.
A defesa, inconformada com a sentença, apresentou recurso, e os arguidos vão manter-se a aguardar pela decisão em liberdade.

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